A revolução A revolução, toda a
revolução, é enunciada como ruptura mas propõe um regresso. A mudança que
encena aponta de facto, desde a sua fundação, para um restabelecimento, para um
retorno, a uma ordem essencialmente antiga, primordial e benigna, que se crê
ter sido corrompida em algum momento. Mudar, mudar profundamente, mas para
reverter. A «revolução» humana que permitiria aceder à cidade ideal, tal como a
concebeu Platão, requeria um esforço de recuperação de uma ordenação primordial
perdida: era uma métabolê,
uma alteração radical, mas também um ponto de viragem que antecedia uma
regressão. Nesta direcção, François Châtelet entende que «por paradoxal que
pareça a afirmação, Santo Agostinho, Bossuet, Rousseau ou Engels são
platónicos», uma vez que neles a superação radical da ordem do mundo visa
sempre – entre a descoberta da Cidade de Deus e o triunfo final do comunismo –
a recuperação de um passado perdido, a restituição de uma ordem utópica e
edénica aniquilada por um declínio que remonta a tempos ancestrais, pontuados
pela intervenção do pecado, pela ruptura do estado de natureza ou pela divisão
social do trabalho.
Mas a «verdadeira revolução», aquela
que sobrevive ao efémero, ao simples fluir dos acontecimentos, não envolve
apenas a destruição de uma ordem política injusta e caduca. Ela implica também
a desconstrução da organização social imperante e dos princípios que a
governaram. Mesmo quando existe uma agenda política que admite medidas
graduais, esta toma sempre por horizonte a mudança decisiva, não aparecendo
como um desvio, uma cedência diante dos princípios, mas antes como um
diferimento, um instante de preparação para a batalha definitiva apontada ao
que importa, que é a demolição definitiva de uma ordem pré-revolucionária.
Marx e Lenine anunciaram a
necessidade objectiva desta operação de devastação do real ao excluírem a
capacidade regeneradora de qualquer «revolução parcial»: era necessário tudo
mudar, inclusive de etapa histórica, ainda que em alguns dos momentos do
aguardado «assalto aos céus» pudesse lançar-se o ataque apenas sobre um dos
flancos do inimigo. Toda a atitude reformista se tornava inútil e abominável,
salvo quando servisse como instrumento da mudança integral. Daí o desdém de
Lenine pelo gradualismo reformador do marxista veterano Karl Kautsky ou do
líder menchevique Julius Martov. Porém, aquilo que acontecerá após o instante
crucial da viragem revolucionária, permanece sempre como algo de impreciso: por
mais inevitável que se torne, toda a revolução é pobre, lacunar, uma vez que
funciona mais como instrumento de demolição, operando sobre a realidade
objectiva, do que como via para um horizonte tangível a alcançar. De Platão a
Mao, passando por Rousseau, Robespierre, Marx ou Trotski, a teoria da revolução
aponta para um futuro mais afortunado e harmónico, mas jamais lhe define os
contornos. Apenas declara que este chegará algum dia, como resultado de um
processo que deposita nas mãos dos seus executantes as decisões sobre o caminho
a percorrer. Num tempo longínquo e incorpóreo, só uma ideia de felicidade por
cumprir.
Durante o século XIX e boa parte do
século XX, o desenvolvimento do movimento operário e o impacto do marxismo
concorreram para associar o qualificativo de «socialista» à própria ideia da
revolução, inaplicável sempre que tal associação se mostrasse impossível. A
vitória política e a projecção internacional da Revolução de Outubro reforçaram
essa aproximação, mostrando a possibilidade – ou «a actualidade» – da sua
realização histórica e dos seus «ensinamentos». A «pátria do socialismo»,
física, povoada, não é já uma quimera nem funciona como um bunker, mas é algo que pode
ser percorrido, que serve de forte avançado numa guerra orientada para
atransfiguração do mundo.
É nesta dimensão que a revolução,
agora forçosamente «socialista», adquire uma medida utópica. Ela não se reporta
apenas à luta parcial travada no quotidiano ou ao momento fugaz da tomada do
poder, mas aponta mais longe, a uma dimensão qualitativa traduzida na
aproximação gradual a uma sociedade igualitária, sem distinção de classes,
sendo este sonho último a fornecer um sentido teleológico a todos os combates.
Trata-se agora de alcançar um momento redentor que corrigirá a sequência
ordinária do devir do mundo, unindo num só tempo o passado, o presente e o
futuro. Retornando a um fabuloso e desejável «tempo das cerejas» e encerrando
em apoteose o anel da história.
A esta originalidade introduzida no
velho conceito de revolução, o marxismo associou uma outra: a sua inscrição num
conflito social generalizado e transtemporal ampliado à escala universal. Rosa
Luxemburgo, Lenine, Gramsci ou Trotski, e mais tarde Mao Tsé-Tung e Guevara,
sublinharam essa dimensão imprescindivelmente internacional da luta de classes
e da revolução socialista. Durante décadas, as suas ideias influenciaram também
muitos dos combatentes das Américas, da África, da Ásia ou do Médio-Oriente que
procuraram unir as suas lutas parcelares a uma dinâmica histórica de âmbito
planetário. «Viva a Revolução!», a consigna, continuou a ser escrita e
pronunciada dia após dia em todas as latitudes, enunciando um caminho redentor
estabelecido numa dimensão global.
A revolução emerge assim como
metáfora da mudança, materializada numa epifania colectiva mas apresentada como
revelação, como passaporte para um futuro modelar, impossível de situar nas
cronologias mas no qual é sempre possível acreditar. Trata-se pois de uma
utopia, sem dúvida, e, como todas as utopias, projectada a partir de desejos e
de vontades concebidos no presente, mas detendo uma capacidade dinâmica que
está muito para além do modelo clássico, situado fora do tempo e do espaço, da
ilha ideal ou da cidade-modelo. Ela é vertida num futuro verosímil, como
configuração material do mundo inteiro.
Este entendimento da revolução
mostrou-se especialmente poderoso entre os grupos ultra-radicais de inspiração
marxista que emergiram nas décadas de 1970 e de 1980, dado a fragilidade orgânica
e o relativo isolamento que invariavelmente os caracterizavam. Entre estes, e
independentemente do formato da exegese do acto revolucionário que seguindo as
diferentes tendências e facções foram elaborando, ela afirmou-se como cimento
agregador de militâncias e de convicções, sobretudo como percepção da
necessidade do acto violento e messiânico levado até ao extremo, «até ao fim»,
enquanto ritual de passagem para uma era nova que, remindo-a de todas as
injustiças, devolveria a felicidade perdida à parte da humanidade que os seus
actores acreditavam representar.
Porém, para uma grande parte das
correntes apostadas na mudança histórica, adeptas desse «socialismo científico»
que se autoproclama anti-utópico, nada existe de metafórico nessa
possibilidade, uma vez que a materialização de Outubro teria mostrado o
carácter plausível da mudança e a possibilidade desta ser concretizada num
tempo que a antecipa, e não apenas transposto para um «amanhã» sempre diferido
como mera escatologia. Daí que a generalidade das organizações comunistas,
mesmo aquelas que condenam hoje os exageros e as perversões do estalinismo, se
recuse a aceitar o carácter potencialmente maligno do modelo de Estado que a
Revolução de 1917 foi capaz de erguer. Reside nesta recusa, aliás, a origem
última da violência com a qual mesmo os sectores habitualmente associados a um
marxismo crítico – se é que a expressão não constitui um pleonasmo – reagiram à
publicação do polémico Livro Negro
do Comunismo. A sua ilusão fundamenta-se, simplesmente, no facto de
Outubro ser menos um modelo do que a prova provada de uma possibilidade. O
sinal para que o mundo perceba que não combatem apenas, quixotescamente, por
quimeras. Orienta-os sempre esse sentido único da inevitabilidade histórica que
lhes permite interpretar e aceitar até os mais extremos dos recuos.
De súbito, a partir da década de 1980
e após a manifestação progressiva de alguma sintomatologia, o edifício do qual
Outubro cavara os alicerces começou a desmoronar-se, levando consigo, como
salientou Hobsbawm em A Era dos
Extrtemos, «o mundo formado pelo impacte da revolução Russa de
1917». Os acontecimentos foram rápidos e, para muitos, inteiramente
incompreensíveis. Conhecemos a sequência que, aliás, parece permanecer
inacabada, e percebemos como dela ressalta principalmente a acentuada redução
do espaço do «socialismo real» e uma percepção alargada da incongruência e da
perversão de muitas das experiências que a sua irrupção havia permitido e
justificado.
A declaração bolchevique do comunismo
como «os sovietes mais a electricidade» deixara de fazer qualquer sentido, uma
vez que a sua base orgânica, centrada no exemplo dado pela organização autónoma
dos operários e depois pela autoridade daqueles que passaram a falar em seu
nome, deixara de existir. No mundo pós-comunista, os fundamentos da mudança
revolucionária já não podem ser lidos como prolongamentos ou como meros ecos da
gesta inaugurada com o poder conquistado pelos «operários, soldados e
camponeses» no inverno de 1917.
No mundo contemporâneo, a identidade
sociológica da revolução deixou de centrar-se no papel histórico da «classe
revolucionária». Como escreveu Daniel Bensaïd logo em 1995, em La DiscordancedesTemps,
agora os novos combates «não visam estabelecer uma nova identidade», mas antes «identificar
uma anti-identidade». Num universo cada vez mais plural e complexo, vivendo
processos de mudança cada vez mais velozes, o sociólogo John Holloway tem
partido deste princípio para, de alguma forma, propor um regresso à matriz
pré-leninista, ao conceito de revolução entendido «como questão, não como
resposta». À política como «anti-política», onde as organizações empenhadas na
mudança se viram mais para o fazer que para o ser, procurando, não tanto
ampliar o poder e a organização de uma casta de militantes, mas antes, como
sugeriu Walter Benjamin, abrir decididamente um «continuum da História». A actividade
de uma boa parte do actual movimento alterglobalização e das lutas unitárias
aplicadas nas mais diferentes causas partilha deste princípio, recolhendo a sua
força na capacidade para propor novos métodos e criar novas formas de
organização, e não tanto na sua capacidade para disputar o poder. Aqui,
sublinha-o ainda Holloway, «a morte das velhas certezas é uma libertação». A
revolução é agora um processo em curso, aberto, não um meio fundamentalmente
orientado para alcançar um fim último.
Todavia, no presente, em cada
presente, para muitos dos que esperam por uma salvação materializada na
remissão do oprimido, e até que outro marco milenar o substitua, Outubro
permanece ainda como sinal sagrado de um desejo e de uma possibilidade. Como
miragem que orienta a travessia do deserto. Para quem desta forma alguma coisa
espera do mundo e do tempo, o monstro que a sua materialização a dada altura
produziu afigura-se apenas como um desvio de percurso, uma pausa antes do
retomar da caminhada. Para os outros, que olham para trás apenas na medida do
indispensável mas acreditam na aventura do possível, trata-se de uma página
incómoda mas virada.